WEAK JUDICIAL REVIEW CANADENSE: PARADIGMA APTO A REFORÇAR O CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E A REDUZIR A TENSÃO ENTRE PARLAMENTO E SUPREMA CORTE?
- Ana Cristina Botelho
- 12 de fev.
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Ana Cristina Melo de Pontes Botelho
Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília/UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público/IDP. Professora visitante do Boston College Law School . Professora do IDP. Auditora do TCU. Professora voluntária da UnB. Pesquisadora do CECC/FD-UnB.
Ao vestir o manto de “Guardiã da Constituição”, a Suprema Corte brasileira tem assumido, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma postura cada vez mais ativista, pois decide questões polêmicas de direitos fundamentais de minorias que dificilmente teriam solução no âmbito do Legislativo. No sistema constitucional brasileiro, o STF não só decide questões de controle de constitucionalidade, mas, por vezes, traça políticas públicas e produz normas. Surgem, então, preocupações relacionadas à crescente tensão entre a Corte e o Parlamento.
A Proposta de Emenda à Constituição 33/2011 foi um claro exemplo da tensão entre esses Poderes e da insatisfação do Parlamento com a judicialização da política e com o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo arquivada, as proposições nela contidas mostraram que houve uma tentativa concreta de reduzir os poderes do Supremo, condicionando, por exemplo, o efeito vinculante das súmulas à prévia aprovação legislativa.
Novas propostas legislativas tem sido feitas para, mais uma vez, tentar reduzir os poderes do STF. A admissibilidade da PEC 8/2021, oriunda do Senado Federal, foi aprovada, recentemente, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em 09/10/2024. Outras PECs para limitar os poderes do STF, também aprovadas, veiculam temas variados, como coibir o ativismo judicial.
Esse é sem dúvida um cenário de forte tensão entre o Parlamento e a Suprema Corte, que se concretiza em um modelo de strong judicial review, adotado pelo Brasil com forte inspiração nos modelos americano e alemão. Como esse modelo não é o único, buscaremos entender melhor o paradigma de weak judicial review, que vem sendo adotado no Canadá, para averiguar se nesse sistema constitucional a tensão também é muito acentuada, ou de alguma forma é reduzida.
Em termos de Direito Constitucional Comparado, verifica-se que no Canadá existe um interessante modelo de revisão judicial, contido nos artigos 1º e 33 da Carta Canadense de Direitos e Liberdades, que é compartilhado entre dois poderes: Legislativo e Judiciário. O weak judicial review canadense permite que o Parlamento tenha o poder de fazer valer leis que foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte, o que demonstra que, em última instância, sobre muitas questões, é o Poder Legislativo quem dá a “última palavra” sobre a constitucionalidade das leis.
Mark Tushnet, ao discutir a questão das formas alternativas de revisão judicial, aponta que a revisão judicial é um "paradigma pós-guerra" do constitucionalismo e que o sistema de revisão judicial forte dos Estados Unidos dificilmente é o modelo dominante. [1] Nessa linha de raciocínio, destaca que o modelo do Tribunal Constitucional Alemão tem sido mais influente ao redor do mundo e que muitas nações se espelharam nele para criarem cortes constitucionais especializadas, rejeitando o antigo sistema norte-americano, no qual a mais alta Corte da Nação serve ao direito comum e ao direito constitucional.
Neste contexto, percebe que uma revisão judicial fraca pode se revelar como uma alternativa para reduzir a tensão gerada, por um lado, pela necessidade de revisão judicial e, por outro, pela importância do estabelecimento do autogoverno democrático.
O que geralmente acontece é que muitas das interpretações das Supremas Cortes não são as únicas que podem ser consideradas razoáveis. Assim, o Canadá adotou em seu design constitucional a revisão judicial fraca, modelo que permite que o legislador corrija o que considera “erros/equívocos” dos juízes, ressignificando direitos substantivos, por meio de emendas ao estatuto ordinário (bill of rights act).
Não é possível ignorar o peso que a declaração judicial representa no processo político. Por isso, Tushnet compreende que mesmo diante da dimensão política do mandato interpretativo, as diferenças entre a revisão judicial fraca e a forte podem não ser tão dramáticas como podem parecer à primeira vista.
O Canadá adotou, em 1982, uma versão diferenciada da revisão judicial fraca. O artigo 1º da Carta Canadense de Direitos e Liberdades prevê que os direitos nela garantidos estão sujeitos a limitações que sejam comprovadamente justificadas, em uma sociedade livre e democrática. O artigo 33, por sua vez, dispõe que os legisladores canadenses podem tornar efetivas as leis por períodos renováveis de cinco anos, não obstante a inconsistência delas com disposições constitucionais importantes.
No caso do Canadá, como visto, embora o exercício da revisão judicial seja competência da Suprema Corte, pode ser afastado, nos casos especificados na Constituição, pelo voto parlamentar. Isso significa que o Tribunal Constitucional tem o poder de julgar a compatibilidade das leis com uma declaração de direitos ou outras disposições constitucionais, mas não dá a “última palavra” sobre a constitucionalidade de textos legais que não estejam em conformidade com tais disposições.
A partir de um mecanismo chamado overriding, o Parlamento pode reeditar texto legislativo que limita o exercício de direitos garantidos no artigo 2º e de 7º a 15 e que já foi reprovado pela Corte Constitucional. Essa exceção, permitida pela aplicação do mecanismo denominado notwithstanding, opera por um período temporal de 5 (cinco) anos, mas pode ser reeditada por iguais períodos.
Busca-se valorizar a democracia deliberativa com a abertura para a participação popular na interpretação constitucional. Assim, a cláusula não obstante (notwithstanding) foi concebida para garantir que os legisladores pudessem dar a “última palavra” sobre questões constitucionais públicas. Os redatores constitucionais canadenses foram motivados pela preocupação de que o novo poder de revisão judicial encorajaria o Judiciário a se tornar um superpoder, em contraposição à tradição de supremacia Parlamentar dos países de Commonwealth.
Esse é um modelo interessante, na medida em que busca reduzir a tensão entre constitucionalismo e democracia. A previsão contida na Seção 33 da Carta Canadense de Direitos e Liberdades, chamada cláusula notwithstanding, possibilita que o Poder Legislativo possa compartilhar a jurisdição constitucional com o Poder Judiciário, situação que oportuniza o estabelecimento de um processo dialógico entre estes Poderes, bem assim a maior observância do princípio democrático.
Apesar da reduzida aplicabilidade prática da cláusula, a regra canadense, sem dúvida, configura um novo perfil de controle de constitucionalidade que pode ser compartilhado entre dois poderes políticos, além de viabilizar a participação do povo, enquanto definidor da última vontade do Estado (autogoverno democrático).
Esse modelo também corrobora a confiança de Jeremy Waldron da capacidade do povo de fazer julgamentos acerca de questões políticas. Em seu livro law and disagreement, Waldron sustenta a importância da participação popular para a caracterização da democracia e deixa aberta a discussão sobre os temas que são objeto de desacordo. [2]
Assim, a ideia de isolamento institucional é rechaçada e a de interação interinstitucional reforçada, justamente visando conferir importância à democracia deliberativa. Embora o diálogo seja um dos fatores de legitimação do judicial review, não pode significar uma deferência da Corte para os desejos da Legislatura, pois a Corte precisa observar primordialmente os preceitos constitucionais.
A respeitabilidade da Corte canadense, na verdade, vem sendo construída de forma consistente ao longo dos anos, pois seus julgadores buscam dar concretude a direitos e liberdades arraigados na Carta Canadense de Direitos e Liberdades a partir de argumentações jurídico-políticas que guardam conformidade com os anseios sociais e tornam transparentes as ratio decidendi. Por outro lado, resta aberta ao Parlamento a possibilidade de dar a “última palavra” sobre a interpretação da Carta, ou usando o artigo 33, ou fazendo emendas e modificações em dispositivos legais outrora considerados inconstitucionais.
Richard Albert [3] nos chama a atenção para o uso restrito da cláusula notwithstanding e destaca que uma das suas causas pode estar relacionada ao fato de que o Judiciário tem se tornado uma instituição mais confiável e fonte de decisões importantes para minorias. [4] Noutros termos, está apto a buscar a resposta certa quando interpreta a Carta dos Direitos e Liberdades.
O fato é que a declaração por uma legislatura de que uma lei continua sendo válida, não obstante ter sido declarada inconstitucional pela Suprema Corte, não só ressalta que no sistema constitucional canadense vigora a ideia de supremacia parlamentar, como também exige que o Parlamento incentive uma ampla discussão pública sobre as questões constitucionais levantadas pelo uso da cláusula.
Essa abertura para a discussão pública, por um lado aperfeiçoa o constitucionalismo democrático, mas por outro abre os olhos do público para o fato de que os legisladores podem estar impondo privações importantes ao exercício de direitos e garantias fundamentais.
As escolhas feitas pelo Parlamento são muito mais políticas que jurídicas e isso chama a atenção do público para possíveis descompassos entre os desejos sociais e os políticos. Em sendo assim, as explicações parlamentares sobre a necessidade de sobreposição de normas constitucionais (override) devem ser bastante plausíveis, pois podem gerar o efeito contrário de terminar fortalecendo o judicial review, mesmo diante da tarefa da Suprema Corte de, muitas vezes, ter que agir de forma contrária às opiniões da maioria, quando desempenha seu papel contramajoritário.
Entendemos, pois, que o design constitucional canadense de weak judicial review tem uma influência positiva sobre a performance do constitucionalismo democrático, haja vista que se apresenta como uma solução mais concreta e ágil para criar uma barreira contra o processo de debilitação democrática que afeta muitas Nações.
Ao invés da debilitação democrática, no caso do Canadá temos uma Nação em que o design constitucional e a prática institucional de respeito recíproco pelas soluções constitucionais adotadas no âmbito do Parlamento e da Suprema Corte permitem que a definição de características essenciais de uma sociedade livre e democrática possam ser decididas em última instância (“última palavra”) pelo Parlamento, que possui ampla legitimidade e assim máxima autoridade para falar sobre o popular will.
Esse mesmo design constitucional permite que se leve em alta consideração as interpretações realizadas no âmbito da Corte Constitucional, uma vez que seus membros, além de gozarem de respeitabilidade cada vez mais elevada, demonstram grande seriedade quando buscam traduzir quais os reais valores da Carta e o que, de fato, significam os princípios e regras nela estabelecidos.
Por um lado o weak judicial review desponta como uma possibilidade para que a “última palavra” não caiba somente à Suprema Corte, mas seja construída de forma dialógica e compartilhada com o Parlmento, o que confere maior efetividade ao constitucionalismo democrático e reduz a tensão entre o Parlamento e a Corte Constitucional. Por outro lado, no Brasil há um isolamento institucional, o que dificulta o estabelecimento de consensos e de diálogos interinstitucionais em o que acentua a tensão e afasta possibilidades de dar maior concretude ao constitucionalismo democrático.
[1] TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: Judicial Review and Social Welfare Rights in Comparative Constitutional Law. Princeton: Princeton University Press, 2008.
[2] WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 2004.
[3] ALBERT, Richard. Counterconstitutionalism. Research Paper, [s.l.], n. 183, p. 21, set. 2008. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1424055. Acesso em: 10 fev. 2025.
[4] Em relação à confiança no trabalho das Cortes, ver Ran Hirschl (The new constitutionalism and the judicialization of pure politics in the world. Fordham Law Review, [s.l.], v. 75, n. 2, p. 95, 2006. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=951610. Acesso em: 10 fev. 2020).