REFORMA TRIBUTÁRIA: O PODER JUDICIÁRIO E A MATERIALIDADE COMUM DA CBS E DO IBS
- Vanessa Teixeira Campos
- 21 de fev.
- 7 min de leitura

Vanessa Campos
Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (IBET) de São Paulo/SP. Advogada do escritório Machado Meyer.

Maia Alexia Martinovich
Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogada do escritório Machado Meyer.
Após décadas de tentativas no Congresso Nacional, em dezembro de 2023, foi aprovada a “Reforma Tributária sobre o consumo”, como ficou conhecida. Por meio da promulgação da Emenda Constitucional nº 132 de 2023, foram introduzidas mudanças significativas no Sistema Tributário Nacional, em especial, com a criação de um IVA Dual[1], consubstanciado na Constribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
A competência para exigir a CBS foi conferida à União, em substituição à Contribuição ao PIS e à COFINS. Já a competência para exigir o IBS foi conferida, de forma compartilhada, aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, em substituição ao ICMS e ao ISS.
Antes da Reforma Tributária, os tributos sobre o consumo possuíam características distintas entre si, cada um incidindo sobre um fato gerador específico e regulamentado por leis próprias. Em linhas gerais, a hipótese de incidência do PIS e da COFINS é a receita bruta das pessoas jurídicas, a do IPI é a industrialização dos produtos, a do ICMS a circulação jurídica de mercadorias, e a do ISS, a prestação de serviços.
No contencioso judicial, os tributos federais são julgados no âmbito dos Tribunais Regionais Federais (“TRFs”), enquanto tributos estaduais/municipais/distritais são julgados pelos respectivos Tribunais de Justiça (“TJs”), em razão da competência e natureza atribuída aos tributos pelo próprio texto constitucional. Assim, os TRFs julgam matérias distintas dos TJs, uma vez que os referidos tributos possuíam materialidades, fatos geradores e legislações que lhes eram próprios.
Com a Reforma Tributária, a materialidade da CBS e do IBS tornou-se exatamente a mesma, inclusive com legislação comum regulamentando-os (Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025 - recém aprovada no Congresso Nacional), a qual definiu para ambos o mesmo fato gerador, base de cálculo, sujeito passivo e hipoteses de não incidência, entre outros elementos.
A despeito da identididade de diversos elementos caracterizadores desses tributos, a sujeição ativa da CBS e do IBS é diferente. O IBS é de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, enquanto a CBS é competência exclusiva da União.
Ou seja, o IBS e a CBS terão regras comuns, mas os conflitos envolvendo referidos tributos serão solucionados por jurisdições distintas, já que o IBS será julgado pela Justiça Estadual, distribuída entre os 26 Estados e o Distrito Federal, enquanto os relacionados à CBS serão solucionados pela Justiça Federal e seus 6 Tribunais Regionais.
Esse fato pode resultar em um cenário inédito no Direito Tributário: um conflito de interpretação entre os TRFs e os TJs, que podem oferecer soluções divergentes sobre uma mesma questão jurídica, dada a identidade de materialidade entre o IBS e a CBS, visto que os elementos essenciais desses tributos são idênticos.
Portanto, a dúvida que surge – e está longe de ser respondida - é: como o Poder Judiciário desempenhará seu papel em situações de discordância quanto à interpretação da CBS e do IBS?
Por serem tributos cujas competências foram conferidas a Entes Federativos distintos, é certo que tais entes possuem diferentes interesses arrecadatórios, o que pode resultar em defesas e pontos de vistas discrepantes quando da formação da relação processual.
Essa situação inédita pode demandar um esforço conjunto dos órgãos judiciais e uma possível uniformização de entendimentos, a fim de evitar divergências e garantir a segurança jurídica no tratamento de questões relacionadas à CBS e ao IBS.
Além disso, os demais sujeitos que integrarão a relação processual, como as administrações tributárias e a advocacia pública, serão também distintos. A CBS será fiscalizada e cobrada pela Receita Federal do Brasil e terá como representante processual a Procuradoria da Fazenda Nacional, enquanto o IBS será fiscalizado e cobrado pelas Receitas Estaduais/Distrital e Municipais, com a gestão do Comitê Gestor, e terão como representantes processuais as Procuradorias Estaduais/Distrital/Municipais. Todos esses fatores terão grande influência no desdobramento de uma disputa judicial.
Essa complexidade não passou despercebida. Na Exposição de Motivos do Projeto de Lei Complementar nº 108/24 (PLP nº 108/24), texto que regulamenta tópicos relacionados exclusivamente ao IBS, fica claro que existe uma preocupação sobre o impacto da Reforma Tributária nas nomas processuais que regem o contencioso judicial, inclusive, reconhecendo-se uma possibilidade de reorganização judiciária[2].
Embora o PLP nº 108/24 mencione as possíveis implicações da Reforma Tributária no âmbito do direito processual tributário, não apresenta soluções concretas. Essa lacuna gera indagações e preocupações aos juristas, pois, na prática, a dissidência jurisprudencial pode ter efeitos incalculavéis e imprevisíveis, minando a isonomia e a segurança jurídica e a efetividade da própria Reforma Tributária.
Caso novos instrumentos ou medidas não sejam implementados pelo legislador, a missão de uniformização da jurisprudência e pacificação das divergências entre os tribunais de instâncias ordinárias poderá recair sobre o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e/ou Supremo Tribunal Federal (STF), dentro das suas respectivas competências constitucionais. no entanto, o jurisdicionado enfrentará barreiras, que, a nosso ver, podem ser intransponíveis.
O art. 102, inciso III, da CF/88 prevê quatro hipóteses de cabimento para que o recurso extraordinário seja julgado pelo STF, dentre elas - e a que interessa ao presente artigo –, a da alínea “a”: contrariar dispositivo desta Constituição. Já o art. 105, inciso III, da CF/88 prevê três hipóteses de cabimento para o recurso espeical perante o STJ, sendo a alínea “a” contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência e a alínea “c” que der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
O recurso especial pela alínea “c” do art. 105, III da CF/88 foi pensado para as situações em que tribunais diferentes oferecem interpretações divergentes para a aplicação de legislação federal em caso de similitude fático-jurídica. Para caracterização da divergência, exige-se a transcrição dos acórdãos distoantes, o cotejo analítico do dissídio jurisprudencial, com a demonstração precisa de similitude fática entre os acórdãos impugnados e os paradigmas, assim como a presença de soluções jurídicas diversas para os mesmos dispositivos legais violados, conforme o artigo 1.029, §1º do CPC/15 e a jurisprudência pacífica do STJ[3].
Apesar de o referido dispositivo ter sido tradicionalmente utilizado em matéria de direito tributário para dirimir divergência entre decisões dos TRFs entre si ou dos TJs entre si, o tipo normativo faz referência ao termo abrangente “outros tribunais”, cabendo a interpretação, na perspectiva dessas autoras, de que a divergência pode se dar entre decisões de TRFs e TJs, uns para com outros.
A realidade é que a análise da divergência pelo STJ pode ser dificultada, ou até mesmo inviabilizada, devido à distinção entre as bases fáticas dos casos (acórdão recorrido e do acórdão paradigma indicado), em virtude da natureza distinta da CBS e do IBS como espécies tributárias.
Além disso, enquanto determinada matéria não estiver sob a sistemática dos recursos repetitivos e da repercussão geral, com o objetivo de uniformizar o entendimento dos tribunais ordinários, os recursos julgados vincularão apenas as partes da relação processual, pondendo até servir como orientação para os juízos e tribunais, mas sem obrigatoriedade e vinculação.
A realidade que se revela é que a afetação de recursos repetitivos pelo STJ ou o reconhecimento da repercussão geral pelo STF, e o consequente julgamento desses recursos, podem demorar anos. Durante esse período, as divergências interpretativas entre os 26 Tribunais de Justiça e os TRFs das 6 Regiões a respeito das normas de regência da CBS e do IBS perdurarão e surtirão efeitos, colocando em cheque a própria credibilidade da Reforma Tributária.
Diante desse cenário, e com o atual arcabouço legislativo, consideramos que, em um primeiro momento, esse caminho não nos parece garantir a melhor solução para o problema identificado.
Uma possível alternativa seria a criação de um incidente de uniformização de jurisprudência pelos tribunais de instâncias ordinárias, semelhante ao que ocorre hoje no âmbito dos Juizados Especiais Federais.
Nos termos do artigo 14 da Lei nº 10.259/2001, é cabível o recurso de pedido de uniformização quando ocorram decisões contraditórias sobre questões de direito material. Existem duas espécies cabíveis contra as decisões colegiadas das Turmas Recursais: pedido de uniformização nacional e pedido de uniformização regional.
O pedido de uniformização nacional é cabível quando há divergência sobre questões de direito material na interpretação da lei federal entre as Turmas Recursais de diferentes Regiões ou quando demonstrada a contrariedade da decisão recorrida em relação à súmula ou à jurisprudência dominante do STJ. Por sua vez, o pedido de uniformização regional é cabível quando demonstrada divergência sobre questões de direito material na interpretação da lei federal entre as Turmas Recursais dos Juizados Especiais da mesma Região.
O incidente de uniformização ora proposto seguiria essa ideia e teria como objetivo permitir a participação das duas esferas – estadual e federal – para julgar demandas com a mesma questão de direito, intensificando o diálogo entre as duas jurisdições e visando, de forma conjunta, a efetivação de diretos.
Nesse sentido, os Tribunais - de justiça e regionais federais – devem dialogar entre si a fim de resolver a questão antinômica, podendo, a partir desse debate, extrair interpretações que levem em consideração argumentos e ponderações apresentados por todos os entes federativos, tanto aqueles responsáveis por exigir a CBS quanto os responsáveis por exigir o IBS.
O objetivo não é afastar a competência dos tribunais superiores para analisar questões relacionadas a esses tributos. Pelo contrário, as Cortes Ordinárias, por meio do incidente, dariam uma primeira resposta aos jurisdicionados, sujeita à revisão e decisão final por parte das Cortes Superiores. A ideia é criar um mecanismo jurídico que permita o amadurecimento da matéria controvertida e estimule o debate de maneira harmônica entre as Cortes ordinárias responsáveis por julgar tributos com materialidade comum, mas cujas competências foram conferidas a diferentes entes federativos.
A criação desse mecanismo contribuiria para uniformizar o entendimento sobre a materialidade do IBS e da CBS, solucionando divergências jurisprudenciais que possam comprometer a isonomia e a segurança jurídica, em conformidade com a essência do código de processo civil de 2015 e promovendo, consequentemente, um sistema jurídico racional, coerente e congruente, fortalecendo, com isso, a forma federativa da nossa República.
[1] Imposto sobre Valor Agregado (“IVA”) essa nomenclatura remete ao tributo existente em vários países da Europa, a exemplo da Hungria, Dinamarca, Noruega, Suécia, Grécia, Itália, incidente sobre as operações de consumo de uma forma ampla.
[2] Neste ponto, cabe sublinhar um aspecto importante. A Reforma Tributária provavelmente demandará mudanças no Direito [material][2] tributário, sobretudo no tocante aos processos relacionados à execução fiscal do IBS e às demais espécies de ações que tenham este tributo como o seu objeto de discussão. Tal quadro requer uma reavaliação das normas processuais de regência do contencioso judicial em sede de IBS, de sorte a conformá-las à nova realidade trazida pela Reforma, o que pode envolver, inclusive, eventual reorganização judiciária. Esta discussão demanda um diálogo entre todas as partes interessadas, notadamente o Poder Judiciário, advocacia pública e privada, administrações tributárias e contribuintes. A despeito de se reconhecer a importância do tema e a necessidade de endereçá-lo, o presente Projeto de Lei Complementar não veicula a resolução destas questões, cujo disciplinamento dar-se-á em instrumentos normativos a serem oportunamente apresentados ao Congresso Nacional, que serão elaborados a partir de um amplo diálogo sobre o tema com todas as partes interessadas.
[3] AgInt no REsp n. 2.130.734/RJ, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 12/8/2024, DJe de 15/8/2024