Uma homenagem do Amigas da Corte à Márcia Barbosa de Souza
Ana Paula Gesing
Mestranda em Direito, Justiça e Impactos na Economia pelo Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES). MBA em Gestão Tributária (Fipecafi). Especialização em Direito Tributário (IBET). Advogada.
Maria Augusta Sampaio Ferraz
Mestranda em Processo Civil (PUC-SP). Pós-graduação em Processo nas Cortes Superiores (Mackenzie-Brasília). Pós-graduação em Processo Civil (IDP). Advogada. Sócia do Sampaio Ferraz Advogados.
Rebeca Drummond de Andrade
Mestre em Direito Tributário e Desenvolvimento Econômico (IDP). Pesquisadora visitante da Universidade Humboldt de Berlim. Advogada. Sócia do Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia.
Gabriela Pimenta R. Lima
Mestre em Direito Constitucional (IDP). LL.M em processo e recursos nos Tribunais Superiores (IDP). Pós-graduação em Direito Tributário (IDP). Especialização em Direito Tributário (IBET). Advogada. Sócia do Moraes Pitombo Advogados.
Um dos principais objetivos do Amigas da Corte é contribuir na edificação de um futuro pautado pela inclusão e pela equidade, onde as mulheres, livres de estigmas e barreiras, exerçam protagonismo nos espaços de poder. Tal missão requer pavimentar, com o rigor necessário, as discussões que envolvam os seus direitos, transformando os erros do passado em lições para que a sociedade evolua. Por isso, hoje resgatamos a memória e o legado de Márcia Barbosa de Souza.
Jovem, negra, nordestina e pobre. Sua história, silenciada e deturpada por mais de duas décadas, foi reavivada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)[1] e pelo Conselho Nacional de Justiça que, em fevereiro de 2022, implementou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[2]. São instituições corajosas que revolveram a cena que marcou a noite daquele 17 de junho de 1998 e a pele de Márcia com escoriações e hematomas pela cabeça e pelo dorso. Nascida em Cajazeiras, no extremo oeste da Paraíba, o corpo de Márcia foi encontrado na capital, João Pessoa, no aterrorizante silêncio de um terreno baldio.
Roubaram seus sonhos e o desejo de uma vida melhor em um mundo de poucas oportunidades. Julgaram-na quando já não podia mais se defender, questionaram seus propósitos e suas intenções. Invadiram sua intimidade na tentativa de justificar um fim brutal. Seu algoz tinha nome e sobrenome, Aércio Pereira de Lima, 54 anos, casado, deputado estadual e protegido pela imunidade parlamentar. Ele não agiu sozinho. Teve o auxílio de quatro comparsas que não foram alcançados pelas vistas da Justiça.
Ao tempo, prevalecia a imunidade parlamentar formal dos arts. 27, §1º, e 53, §1º da Constituição, que previa que, desde a expedição do diploma, os parlamentares estaduais não poderiam ser processados criminalmente sem prévia licença de sua casa legislativa.
A Assembleia Legislativa da Paraíba, sem qualquer justificativa, negou por duas ocasiões o prosseguimento da Ação Penal contra o parlamentar. Em 2001, com a promulgação da Emenda Constitucional 35, o art. 53 da Constituição Federal foi alterado, estabelecendo que o processamento de ações penais contra parlamentares por crimes praticados após a diplomação não mais dependeria de autorização prévia. Dessa forma, caso a denúncia fosse recebida, o tribunal competente deveria somente dar ciência à respectiva casa, e apenas por iniciativa do partido político e por voto da maioria de seus membros é que se poderia suspender o andamento do processo.
Com a mudança, em 2003 a Ação Penal foi formalmente iniciada. Como não se elegeu em 2002, não fazia mais jus à prerrogativa de foro, sendo a denúncia oferecida junto ao Tribunal do Júri.
Aércio foi condenado em 2007 a 16 anos de reclusão pela prática de homicídio qualificado por motivo fútil e pelo emprego de asfixia e ocultação de cadáver. Ainda em liberdade, interpôs recurso, mas faleceu aos 64 anos, em fevereiro de 2008, enquanto aguardava o julgamento. Mesmo tendo cometido um crime grave e não sendo mais parlamentar, seu corpo foi velado com pompa e circunstância no Salão Nobre da Assembleia Legislativa, tendo sido decretado luto oficial por três dias[3]. As outras quatro pessoas que participaram do crime sequer foram denunciadas.
Mais do que o desfecho, percorrer o caminho investigatório e processual marcado pela prática da descredibilização da vítima é o que notabiliza esse e tantos outros casos. Baseada na “neutralização de valores”, como bem apontou a Corte IDH, o advogado do réu juntou mais de 150 páginas de artigos encomendados relatando supostas prostituição, overdose, depressão e até um imaginário suicídio de Márcia. Da tribuna, ela foi desenhada como “prostituta”. Já Aércio, como “pai de família”[4].
Preconceitos e estereótipos que parecem fazer parte de tempos medievais, na verdade, é o machismo estrutural que todos nós sabemos ecoar até o século XXI, como bem lembrou o ministro Alexandre de Moraes em seu voto na ADPF 1107, na qual o STF declarou inconstitucional a prática de questionar a vida sexual ou modo de vida da vítima[5]. São questionamentos e especulações com emprego de estereótipos de gênero. Uma tendência de desqualificar a vítima, mulher, numa tentativa de minimizar o crime praticado por homens criminosos. Daí a coragem da Corte IDH e do CNJ em reavivar a memória e implementar mudanças, lembrando-se do passado para que ele não mais se repita.
O caso de Márcia está intrinsicamente ligado ao Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Em 2000, organizações não governamentais apontaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a responsabilidade internacional do Brasil por diversas violações aos direitos humanos.
Duas décadas depois, em novembro de 2021, a Corte proferiu sentença que responsabilizou o Brasil pela discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar valendo-se de estereótipos negativos em relação à vítima, além da aplicação indevida da imunidade parlamentar, determinando que o país adotasse uma série de medidas para o combate à violência contra a mulher. Foi a primeira vez que o Estado brasileiro sofreu condenação internacional pelo crime de feminicídio.
O Protocolo, portanto, além de atender à orientação da Corte IDH, adota medidas a fim de guiar magistrados e magistradas no julgamento de casos concretos, de modo que julguem sob a lente de gênero, avançando na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade[6], dialogando com sistemas internacionais de proteção ao incorporar o “Modelo de protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero (feminicídio)”, adotado pelo Brasil em 2016.
Trata-se de um valioso instrumento que conta com um Comitê de Acompanhamento, criado pela Resolução CNJ 492/2023, para orientar a adoção de decisões com uma abordagem sensível e humana acerca das questões de gênero, reconhecendo as desigualdades estruturais que afetam mulheres e outros grupos vulneráveis, de modo a evitar que a violência das quais são vítimas seja seguida de uma violência institucional. Prevê, ainda, a obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia.
Também reforça a implementação de políticas nacionais ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, estabelecidas pelas Resoluções CNJ 254 e 255. Esta última, vale lembrar, prevê que “todos os ramos e unidades do Poder Judiciário deverão adotar medidas” para assegurar a igualdade de gênero e “incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais” (art. 2º).
Em março de 2023, na semana em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher, foi realizado no STJ seminário sobre o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero[7], quando a então presidente da Suprema Corte e do CNJ, ministra Rosa Weber, reafirmou a necessidade “do uso de lentes de gênero” na interpretação do Direito por parte da Justiça, para que o Poder Judiciário não reforce padrões discriminatórios e preconceituosos[8].
A ministra também destacou que as dificuldades enfrentadas para a concretização da presença igualitária de gênero são enormes, não apenas nos tribunais, mas em praticamente todas as relações sociais em nosso país. Pontuou ainda que no próprio Judiciário são observados atos discriminatórios, o que é um indicativo de que nem o Poder que deveria impedir essas condutas está imune à cultura de subjugação e de desqualificação do feminino impregnada na sociedade brasileira[9].
Durante o seminário, foram oferecidas orientações práticas aos magistrados e magistradas sobre como considerar as especificidades de gênero nos julgamentos, buscando prevenir preconceitos e discriminações. Iniciativas como essa representam um significativo avanço no reconhecimento do direito à igualdade e na construção de uma justiça mais inclusiva e sensível às diferenças sociais, sendo o Poder Judiciário um dos principais pilares de sustentação.
O evento também marcou o início do Programa Humaniza STJ[10], regulamentado pela Instrução Normativa n. 6/2021, de 23 de fevereiro, cujo objetivo é o desenvolvimento de ações para dar efetividade, no que couber, aos aspectos relacionados ao Calendário de Direitos Humanos do CNJ, instituído pela Portaria CNJ 284/2020. O programa prevê atenção especial a questões como igualdade de gênero e participação institucional feminina, eliminação da violência contra a mulher, igualdade racial e participação institucional de negros, pardos e outros grupos étnicos que integram a força de trabalho do STJ e prevenção e combate ao assédio moral e sexual. A implementação do Programa de Gestão Institucional de Direitos Humanos no âmbito do STJ é mais um passo para combater a discriminação e a desigualdade.
Outra iniciativa do STJ foi a edição 231[11] da série “Jurisprudência em Teses”, de março de 2024, que apresentou julgamentos sob a perspectiva de gênero. Merece especial destaque o RMS 70338 que definiu que: “No contexto de violência doméstica contra a mulher, a decisão que homologa o arquivamento do inquérito deve observar a devida diligência na investigação e os aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima”[12].
O STF também é um grande aliado, afinal “não há possibilidade de tratar isso [machismo estrutural] com meias medidas. É importante que o Supremo Tribunal Federal demonstre que não vai mais tolerar isso”[13]. Casos emblemáticos demonstram a importância dessa postura, a exemplo do reconhecimento da união homoafetiva (ADI 4277 e ADPF 132); da autodeterminação de identidade de gênero (ADI 4275); da concessão de prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças até 12 anos ou de pessoas com deficiência (HC 143641); exclusão da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade (Tema 72-RG).
Outro destaque é a recente proibição, pelo Pleno da Suprema Corte, de questionamentos como os de Márcia. Sob a relatoria da única mulher que ainda possui assento em nossa Suprema Corte, ministra Cármen Lúcia, na ADPF 1107 foi reconhecida a inconstitucionalidade “da prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (CF, arts. 1º, III; 3º, I e IV; 5º, caput e I; 226, § 5º)”.
A história de Márcia Barbosa de Souza não pode ser vista como um episódio isolado, mas como um reflexo cruel de uma estrutura que por anos silenciou vozes femininas e relativizou direitos fundamentais.
A implementação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero é mais do que um avanço normativo, é uma promessa de que o sistema de Justiça será não apenas uma arena de decisões técnicas, mas também um espaço de transformação social.
Cabe ao Poder Judiciário, à sociedade e a cada um de nós sustentar a coragem de enfrentar preconceitos e desconstruir estereótipos que perpetuam a desigualdade e a violência. Desejamos que os passos dados sejam apenas o início de um caminho em direção ao não retrocesso, onde nenhuma mulher tenha sua memória apagada, sua dignidade questionada ou sua história silenciada. Desejamos que a Justiça seja a nossa aliada e honre o que há de mais essencial: o respeito à vida e à igualdade.
[1] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Barbosa de Souza vs. Brasil. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf
[2] Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Brasília, março, 2022. P. 14. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf. Acesso em: 06 de janeiro de 2025.
[4] Cf. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Barbosa de Souza vs. Brasil. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf, p. 45.
[5] “É lamentável que, terminando o primeiro quarto do século XXI, nós ainda tenhamos esse machismo estrutural, inclusive em audiência perante o Poder Judiciário” (ADPF 1.107, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 25/5/2024).
[6] Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Brasília, março, 2022. P. 14. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf. Acesso em: 06 de janeiro de 2025.
[7] Superior Tribunal de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero: teoria e prática. Brasília. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Institucional/Educacao-e-cultura/Eventos/Seminario-Protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero.aspx. Acesso em: 09 de janeiro de 2025.
[8] Supremo Tribunal Federal. Presidente do STF defende “olhar de gênero” para que Judiciário não reforce padrões discriminatórios e preconceituosos. Brasília. 2023. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-do-stf-defende-olhar-de-genero-para-que-judiciario-nao-reforce-padroesdiscriminatorios-e-preconceituosos/. Acesso em: 09 de janeiro de 2025.
[9] Supremo Tribunal Federal. Presidente do STF defende “olhar de gênero” para que Judiciário não reforce padrões discriminatórios e preconceituosos. Brasília. 2023. Disponível em: https://noticias.stfs.br/postsnoticias/presidente-do-stf-defende-olhar-de-genero-para-que-judiciario-nao-reforce-padroesdiscriminatorios-e-preconceituosos/. Acesso em: 09 de janeiro de 2025.
[10] Superior Tribunal de Justiça. STJ regulamenta Programa de Gestão Institucional de Direitos Humanos. Brasília. 2021. Disponível em:https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/01032021STJregulamenta-Programa-de-Gestao-Institucional-de-Direitos-Humanos.aspx. Acesso em: 09 de janeiro de 2025.
[11] Superior Tribunal de Justiça. Julgamentos com perspectiva de gênero IV. Brasília. 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/doc.jsp?livre=%27231%27.tit. Acesso em 09 de janeiro de 2025.
[12] Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança 70338/SP, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 30/08/2023.
[13] Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto proferido na ADPF 1107.
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