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O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMÃO: PRESTÍGIO E DESAFIOS NUM CENÁRIO DE CRESCENTE POLARIZAÇÃO

  • Renata Cherubim
  • 27 de jan.
  • 6 min de leitura
















Renata Cherubim

Doutora em Direito (Humboldt-Universität zu Berlin). Mestre em Direito (Humboldt-Universität zu Berlin). Bacharel em Direito (Universidade de Brasília). Membro do corpo de pesquisa e professora de Direito Constitucional, Direito Europeu, Direito Administrativo e Metodologia Jurídica da FOM Hochschule, Alemanha.



O Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht, BVerfG) constitui uma das instituições alemãs mais respeitadas e confiáveis. Esse prestígio não se limita ao ambiente jurídico, nacional e internacional, mas se reflete também na percepção geral que cidadãs e cidadãos alemães têm da Corte. Uma pesquisa realizada em 2023 mostrou que cerca de 70% da população confia no Tribunal, resultado que o coloca em quarto lugar no índice de confiança, atrás apenas da categoria profissional médica, da polícia e das universidades.[1] 


Esse dado contrasta com a descrença geral nas instituições estatais que se vem instaurando nos últimos anos. Sobretudo em decorrência de episódios de polarização e radicalização política, observa-se um aumento significativo de ataques, inclusive físicos, contra figuras públicas e políticos na Alemanha, assim como uma escalada de discursos de ódio e ameaças em plataformas digitais.[2] Nesse cenário, é crucial questionar as razões que motivam tamanha confiabilidade na Corte, principalmente para assegurarmos seu bom funcionamento. Poderá a Corte permanecer estável num ambiente de crescente desestabilidade e polarização?


Analisemos, inicialmente, os fatores que propiciam a estabilidade institucional do Tribunal. O primeiro aspecto crucial para a boa imagem do BVerfG é certamente o modelo de seleção de suas juízas e juízes. Ao todo, são 16 membros que compõem a Corte, sendo, de acordo com o que prevê o artigo 93 II da Lei Fundamental, metade escolhida pelo Parlamento Federal (Bundestag) e a outra metade, pelo Conselho Federal (Bundesrat, o “senado” alemão, órgão que representa os estados federados no Poder Legislativo Federal). A eleição de juízas e juízes exige quórum qualificado (§ 5° a § 7° da Lei sobre o Tribunal Constitucional Federal) e, portanto, consenso entre diferentes partidos. Um terço dos membros do Tribunal tem de necessariamente vir de tribunais superiores; os outros dois terços são em geral preenchidos por juristas com sólida reputação acadêmica. O Executivo não participa diretamente da escolha dos membros do Tribunal. Portanto, a interferência do governo fica limitada, e não há espaço para imposições unilaterais do Primeiro-Ministro.


Ademais, nota-se que a forma de seleção por diferentes casas legislativas propicia um tipo de legitimidade difusa, pois a Corte reflete uma maioria de forças parlamentares, num arranjo que inclui minorias e a representação de estados federados. Esse quadro reduz a possibilidade de questionamentos sobre partidarismo e propicia que as decisões, embora não sempre isentas de crítica, sejam recebidas com confiança, mesmo em temas sensíveis.


Outro fator que fortalece a imagem do Tribunal Constitucional Federal diz respeito à forma como suas decisões são tomadas e fundamentadas. A votação não é pública, o que pode gerar certo distanciamento em termos de transparência absoluta, principalmente quando comparada à forma de decisão no Brasil, por exemplo, onde o princípio da publicidade exige maior abertura dos procedimentos processuais. No entanto, pode-se dizer que o Judiciário alemão como um todo trabalha com rigor metodológico notável na elaboração e fundamentação de suas sentenças.


As decisões do BVerfG são conhecidas pela clareza da argumentação e pelo emprego de métodos de interpretação constitucional baseados na letra da Lei Fundamental e em sua própria jurisprudência. Embora o debate entre os juízes não ocorra em público, o Tribunal publica as decisões na íntegra, acompanhadas de fundamentações detalhadas. Esse cuidado metodológico permite à comunidade jurídica — e, em certa medida, à sociedade em geral — compreender as razões do julgamento, diminuindo a margem para acusações de arbitrariedade ou motivação partidária.


Somado à objetividade no método de decisão, outro fator que gera confiança é, sem dúvida, a ausência de personalismo. Diferentemente de outras cortes constitucionais em que juízes se tornaram figuras públicas em constante exposição midiática, de quem, muitas vezes, o público exige justificativas e explicações, o BVerfG pode seguir uma tradição mais reservada. Quem não é da área jurídica, na grande maioria das vezes não conhece as magistradas e magistrados, que, resguardados da constante necessidade de aprovação, têm mais tranquilidade para decidir, com mais distanciamento da política e do clamor popular.


Assim como o Judiciário de um modo geral, o Tribunal Constitucional alemão intervém somente quando provocado, e, dado o rol de processos relativamente pequeno que lhe cabe decidir, apenas em questões de elevada importância constitucional. Isso dificulta que se torne alvo de críticas sistemáticas, mesmo em um contexto de crescente descrença nas instituições. Aliás, esse leque de competências pouco amplo do Tribunal acaba levando a um volume de processos relativamente pequeno. Assim, por exemplo, em 2023, o Tribunal decidiu pouco mais de 5.300 processos.[3] Isso favorece a qualidade das decisões e reduz a banalização das demandas, fortalecendo a instituição como um todo.


Como se pode ver, grande parte do sucesso do Tribunal dá-se devido a boas escolhas do poder constituinte e do legislador, principalmente quanto à forma de se selecionarem juízas e juízes e ao número relativamente pequeno de competências do Tribunal. Além disso, a qualidade de seu trabalho, resultante de metodologia austera, advém de uma excelente formação jurídica, típica da Alemanha, que gera profissionais de conhecimento jurídico consolidado. No entanto, é certo que o bom funcionamento do Tribunal também é fruto de um ambiente geral de estabilidade institucional que marca a Alemanha do pós-guerra. A Alemanha é um Estado constitucional democrático de direito que funciona bem, e a reconstrução da democracia alemã no pós-guerra pautou-se pela busca de estabilidade e prevenção de retrocessos autoritários. Nesse contexto, o Tribunal Constitucional Federal emergiu como guardião dos valores fundamentais e da ordem constitucional democrática.


No ambiente político, até pouco tempo atrás, o país manteve-se relativamente imune a ondas de polarização, ao menos se comparado a outras nações ocidentais. No entanto, é preciso atentar para possíveis mudanças nesse cenário. A polarização vem-se alastrando também por aqui, partidos extremistas vêm crescendo e ganhando representatividade. O Parlamento e a classe política como um todo perderam prestígio junto à população, e os ataques a pessoas públicas, tanto no mundo real quanto no virtual, são uma constante na Alemanha.[4] Nesse cenário, é possível que as críticas ao Tribunal e às suas decisões, hoje pontuais e qualificadas, limitadas em grande parte ao ambiente jurídico, tornem-se mais generalizadas e contundentes.

À medida que a Corte passe a ser vítima de campanhas, por exemplo, nas mídias sociais, é possível que juízas e juízes sintam necessidade de se posicionar publicamente e de defender decisões, a exemplo do que está ocorrendo em outros lugares do mundo. Ademais, com a perda de credibilidade do próprio Parlamento, o público poderá começar a questionar a legitimidade do Tribunal também, cuja escolha, como se viu, depende da atuação de parlamentares.


Inclusive, recentemente, como resultado direto do crescimento da ultradireita, o Parlamento federal aprovou uma reforma constitucional para resguardar a independência do Tribunal Constitucional. Até pouco tempo, a estrutura e o funcionamento da Corte eram regidos principalmente pelo direito infraconstitucional, e as regras constitucionais sobre o Tribunal eram sucintas. Em tese, isso deixava a Corte vulnerável a alterações na composição do Parlamento, já que as regras podiam ser alteradas por lei federal, sem necessidade de maioria qualificada. No entanto, diante de um panorama político estável, tal situação nunca se tornou uma ameaça real à autonomia do Tribunal.


No atual quadro de instabilidade política, com a ultradireita em pleno crescimento, com o objetivo de assegurar a autonomia da Corte e dificultar alterações, os parlamentares acharam por bem reformar a Lei Fundamental para introduzir normas sobre o mandato de 12 anos das juízas e juízes, o limite de idade de 68 anos, bem como a divisão da Corte em dois “senados”, entre outras regras.[5] Essas mudanças serão importantes: Nos últimos meses, o governo federal alemão caiu, e as eleições parlamentares, antes previstas para setembro de 2025, foram antecipadas para 23 de fevereiro.[6] As pesquisas indicam probabilidade de a extrema-direita se tornar a segunda maior bancada no Parlamento a partir de fevereiro.


O Tribunal Constitucional Federal Alemão conquistou, ao longo de décadas, uma reputação de integridade, imparcialidade e rigor metodológico, recebendo ampla confiança tanto do público quanto da comunidade jurídica. Esse sucesso institucional relaciona-se a diversos fatores, e resulta da tradição alemã de respeito às instituições. O Tribunal Constitucional Federal mantém altos índices de confiança popular, em parte por não estar exposto ao mesmo nível de embates políticos cotidianos. À medida em que cresce a polarização e a instabilidade política, e com a erosão da credibilidade nas instituições estatais, é possível que a confiança no Tribunal perca força. Por hora, a reforma aprovada nas últimas semanas parece suficiente para proteger o Tribunal do crescimento do extremismo e garantir sua autonomia. Por hora.


[1] PATZELT, Werner. Weshalb vertrauen die Deutschen so sehr dem Bundesverfassungsgericht?. In: VAN OOYEN, Robert; MÖLLERS, Martin (org.). Handbuch Bundesverfassungsgericht im politischen System. Wiesbaden: Springer VS, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-658-37532-4_27-1. Acesso em: 20 jan. 2025.

[2] Conf., p. ex., ALEMANHA. Bundestag. Straftaten gegen Parteirepräsentanten und -mitglieder. [Berlim]: Parlamento Federal, 08 out. 2024. Disponível em: https://www.bundestag.de/presse/hib/kurzmeldungen-1023126. Acesso em: 20 jan. 2025.

[3] Conf. ALEMANHA. Bundesverfassungsgericht. Jahresbericht 2023. [Karlsruhe]: Tribunal Constitucional Federal, 13 mar. 2024. Disponível em: https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Downloads/DE/Jahresbericht/jahresbericht_2023.html?nn=68124. Acesso em: 20 jan. 2025. Sobre as competências do Tribunal, conf. SACHS, Michael. Verfassungsprozessrecht. 4 ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2016. p. 108-179.

[4] ALEMANHA, op. cit. (nt. 2).

[5] Para artigo em português, conf. FRITZ, Karina Nunes. Alemanha altera a Constituição para fortalecer o Tribunal Constitucional. Migalhas, 14 jan. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/422875/alemanha-altera-a-constituicao-para-fortalecer-o-tribunal. Acesso em: 20 jan. 2025.

[6] CHERUBIM, Renata. Constituição alemã e eleições antecipadas: a quantas anda a confiança em Olaf Scholz?. Jota. Observatório Constitucional. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/constituicao-alema-e-eleicoes-antecipadas-a-quantas-anda-a-confianca-em-olaf-scholz. Acesso em: 20 jan. 2025.

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