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HABEAS CORPUS: ANÁLISE DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL EM DECISÕES DO STJ SOBRE DISPUTAS FAMILIARES

  • Gabriela Bederodes
  • 7 de abr.
  • 6 min de leitura





















Gabriela Brederodes

Pós-graduada em Prática Processual Civil Avançada nos Tribunais pelo Damásio Educacional. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Graduada pelo Centro Universitário Tabosa de Almeida (Asces-Unita). Advogada. Sócia-fundadora do Gabriela Brederodes Advogados Associados. Ex-corregedora da AMTTC.



O Habeas Corpus (HC) é um remédio constitucional de suma importância para o ordenamento jurídico brasileiro, caracterizando-se como instrumento processual destinado a garantir a liberdade de locomoção do indivíduo contra atos ilegais ou abusivos do poder público.


Previsto no art. 5º, LXVIII[1], da Constituição Federal, sua aplicação tem revelado interpretações ampliativas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), extrapolando a concepção tradicional de proteção contra prisão ilegal.


Não obstante sua concepção clássica, observa-se, em diversos julgados recentes da Corte Cidadã, a tendência de ampliação do escopo protetivo do Habeas Corpus, estendendo-se a situações nas quais há restrição injusta ao direito de ir e vir, ainda que não configurem prisão em sentido estrito. Esta ampliação tem se mostrado essencial à salvaguarda de direitos fundamentais em contextos diversos, incluindo disputas familiares.


O presente artigo analisa criticamente a aplicação do Habeas Corpus pelo STJ em situações envolvendo direito de família, tendo como finalidade evidenciar os parâmetros de admissibilidade deste remédio constitucional e seu papel na proteção contra aplicações distorcidas de outros institutos legais, como a Lei Maria da Penha.


Na jurisprudência do STJ, consolidou-se o entendimento de que, embora não caiba Habeas Corpus contra decisão que indefere pedido liminar (Súmula 691/STF), excepcionam-se situações de flagrante ilegalidade ou teratologia da decisão impugnada. Nestas hipóteses, o Tribunal Superior tem admitido o manejo deste remédio constitucional, inclusive com concessão de ordem de ofício, reafirmando sua função de instrumento de proteção contra arbitrariedades.


Para ilustrar esta aplicação ampliativa, analisa-se caso paradigmático apreciado pelo STJ por meio do Habeas Corpus nº 866933/PE[2], no qual o uso inapropriado da Lei Maria da Penha em contexto de suposta violência doméstica em face de menor que resultou em decisão desproporcional e juridicamente equivocada, encobrindo uma verdadeira disputa de guarda das crianças.


Na hipótese examinada, uma genitora foi privada da convivência com seus filhos menores por força de decisão judicial que determinou busca e apreensão, fundamentada na Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006). A ordem judicial originou-se de alegações do genitor sobre supostas agressões contra um dos filhos, baseadas em eventos pretéritos e sem comprovação de contemporaneidade ou persistência do alegado risco.


O magistrado de primeira instância aplicou a Lei n. 11.340/2006 e determinou, além da busca e apreensão dos menores, medidas protetivas de urgência consistentes no afastamento da genitora e proibição de contato com os filhos, sem prévia oitiva do Ministério Público ou realização de estudo técnico multidisciplinar, ignorando inclusive a existência de acordo de guarda compartilhada homologado judicialmente. Vale salientar que houve a interposição de agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, contexto que foi indeferida a liminar requerida.


Impetrado Habeas Corpus perante o STJ, foi sustentada, em síntese, a ilegalidade da medida por: (I) ausência de contemporaneidade das acusações; (II) incompetência do juízo da vara de violência doméstica, por não se tratar de hipótese de violência de gênero; (III) ausência de manifestação do Ministério Público; (IV) inexistência de estudo multidisciplinar prévio; e (V) violação à decisão judicial homologatória de guarda compartilhada.


O Tribunal da Cidadania, por meio de decisão monocrática, concedeu a ordem de ofício para reconhecer a ilegalidade da medida e autorizar o retorno dos menores à residência materna, observadas as condições de guarda compartilhada anteriormente estabelecidas.


Ao analisar o caso, o Relator enfatizou dois fundamentos centrais para a concessão da ordem: (I) a inaplicabilidade da Lei Maria da Penha à espécie, por ausência de violência baseada no gênero; e (II) a desproporcionalidade da medida diante das circunstâncias fáticas.


Para fundamentar sua conclusão quanto à inaplicabilidade da Lei n. 11.340/2006, o julgador invocou precedente da Quinta Turma do STJ (RHC n. 50.636/AL), segundo o qual:


[...] para incidência da Lei Maria da Penha, é necessário que a violência doméstica e familiar contra a mulher decorra de: (a) ação ou omissão baseada no gênero; (b) no âmbito da unidade doméstica, familiar ou relação de afeto; decorrendo daí (c) morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.


O acórdão paradigma também assentou que:


[...] a definição do gênero sobre o qual baseada a conduta comissiva ou omissiva decorre do equivocado entendimento/motivação do sujeito ativo de possuir 'direitos' sobre a mulher ou de que ela lhe pertence, evidenciando vulnerabilidade pela redução ou nulidade da autodeterminação.


Ao analisar o mérito da questão, o Relator identificou um equívoco fundamental na aplicação da legislação. O ministro Ribeiro Dantas reconheceu que as alegações apresentadas, mesmo se comprovadas, estariam relacionadas à proteção infantojuvenil, enquadrando-se no âmbito da Lei n. 14.344/22 (que trata especificamente da violência contra crianças e adolescentes) e não na esfera da Lei Maria da Penha.


Esta distinção foi crucial, pois evidenciou a ausência do elemento central para a aplicação da Lei n. 11.340/2006: a violência baseada em gênero. Conforme destacado na decisão, o caso não apresentava a motivação discriminatória contra a condição feminina que caracteriza a violência de gênero, requisito indispensável para a incidência das medidas protetivas da Lei Maria da Penha.


A decisão proferida pelo Ministro Relator revela-se paradigmática por três aspectos fundamentais: (I) reafirma a possibilidade de utilização do HC em situações excepcionais que extrapolam sua concepção tradicional; (II) consolida entendimento quanto aos requisitos para aplicação da Lei Maria da Penha; e (III) evidencia os riscos da instrumentalização indevida deste importante marco legal de proteção à mulher.

Este último aspecto merece especial atenção. A Lei Maria da Penha foi concebida como mecanismo de proteção à mulher vítima de violência baseada no gênero, visando superar a histórica invisibilidade jurídica e social deste fenômeno. Sua utilização distorcida em contextos diversos, como disputas de guarda, não apenas compromete a eficácia do próprio instituto, mas pode resultar em graves violações a direitos fundamentais.


O caso analisado ilustra como a aplicação indevida da Lei n. 11.340/2006, pode servir à instrumentalização de conflitos familiares, resultando em medidas desproporcionais que afrontam princípios como o contraditório, a ampla defesa e o melhor interesse do menor.


Ao reconhecer a ilegalidade da decisão e conceder a ordem de Habeas Corpus, o STJ reafirma os limites e a finalidade precípua da Lei Maria da Penha, evitando sua utilização como mecanismo de pressão ou retaliação em disputas parentais, bem como evita uma verdadeira utilização ao reverso da finalidade legal.


A ampliação do escopo do Habeas Corpus para abarcar situações como a analisada representa importante evolução jurisprudencial, permitindo resposta célere e eficaz a violações de direitos fundamentais que impactam significativamente a liberdade individual e outros direitos correlatos, como a convivência familiar.


No caso concreto, a intervenção do STJ por meio do HC mostrou-se essencial para reverter situação de manifesta ilegalidade, evitando que uma interpretação equivocada da Lei Maria da Penha resultasse na manutenção de medida desproporcional e potencialmente danosa, tanto para a paciente como para os menores.


Importante ressaltar que a concessão da ordem de Habeas Corpus pelo STJ não significou desprezo à proteção de crianças e adolescentes, mas sim a reafirmação de que esta proteção deve ocorrer dentro dos parâmetros legais adequados, com observância das garantias processuais e dos direitos de todos os envolvidos, observando-se os elementos probatórios e o caso em concreto.


Ao determinar o retorno dos menores à residência materna sob as condições da guarda compartilhada anteriormente estabelecida, a Corte Cidadã equilibrou a necessidade de proteção aos menores com o respeito aos direitos da genitora e ao melhor interesse das crianças.


O caso analisado evidencia importantes lições para a prática jurídica: o julgado reafirma a vitalidade do Habeas Corpus como instrumento de proteção contra restrições injustificadas à liberdade, mesmo em contextos que extrapolam sua concepção tradicional. A interpretação ampliativa deste remédio constitucional pelo STJ representa significativo avanço na tutela de direitos fundamentais, permitindo resposta célere e eficaz a situações de urgência.


O precedente também estabelece parâmetros claros para a aplicação da Lei Maria da Penha, reforçando que sua incidência requer a caracterização de violência baseada no gênero. Tal entendimento contribui para a preservação da eficácia deste importante instrumento legislativo, evitando sua banalização ou instrumentalização para fins diversos daqueles para os quais foi concebido.

Adicionalmente, o caso evidencia a necessidade de cautela na aplicação de medidas judiciais em contextos familiares, especialmente aquelas que impactam diretamente a convivência entre pais e filhos. Decisões desta natureza devem ser precedidas de análise criteriosa e multidisciplinar, observando-se o contraditório, a ampla defesa e, sobretudo, o princípio do melhor interesse do menor.


A decisão analisada reafirma, portanto, o papel do STJ como intérprete qualificado da legislação federal, contribuindo para a construção de uma jurisprudência que equilibra a proteção a grupos vulneráveis – como mulheres, crianças e adolescentes – com o respeito às garantias processuais e aos princípios constitucionais que fundamentam o Estado Democrático de Direito.



 

[1] LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

[2] STJ - HC: 866933, Relator.: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 19/11/2024

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 02 fev. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC: 866933, Relator.: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 19/11/2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/2865095172/inteiro-teor-2865095180. Acesso em: 03/04/2025.                                                         

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 50.636/AL. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Julgado em 28/11/2017. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201402064194&dt_publicacao=01/12/2017. Acesso em: 03/04/2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses nº 211 - Julgamentos com Perspectiva de Gênero III. Brasília, DF, 20 de abril de 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20211%20-%20Julgamentos%20Com%20Perspectiva%20de%20Genero%20III.pdf.       Acesso em: 03/04/2025.  

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