DIREITOS SOCIAIS E MÍNIMO EXISTENCIAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES DO BRASIL
- Cynara Almeida
- 24 de fev.
- 4 min de leitura

Cynara Almeida Pereira
Pós-graduanda em Direito Público (PUC/RS). LL.M. em Direito Processual Civil (FGV). Membro da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da OAB/DF. Advogada no escritório Santos Perego e Nunes da Cunha.
Quando várias famílias se reúnem para satisfazer necessidades que não podem suprir isoladamente, forma-se uma aldeia. É a ideia que se extrai dos escritos filosóficos de Aristóteles em Política[1]. Na obra, o pensador tutela a satisfação das necessidades básicas do homem como o primeiro passo para o desenvolvimento da civilização.
No centro do debate constitucional estão as necessidades básicas do homem. Disso decorre a oportunidade de ponderáveis reflexões sobre o mínimo existencial, já considerado por diversas correntes filosóficas.
O liberalismo, representado por John Locke e John Rawls, defende que o Estado deve garantir condições mínimas para a liberdade individual e a justiça social, sendo este último um dos primeiros a propor que desigualdades só são aceitáveis se beneficiarem os menos favorecidos[2].
O contratualismo, por sua vez, como exposto por Hobbes e Rousseau, argumenta que o Estado deve garantir a ordem e a segurança dos indivíduos, o que inclui a proteção contra a miséria e a exclusão social[3]. Já o marxismo, com Karl Marx, enfatiza a necessidade de uma mudança estrutural na sociedade para que os trabalhadores tenham acesso a condições mínimas de existência digna[4].
No âmbito jurídico, o mínimo existencial compõe um conjunto de direitos sociais que são materialmente fundamentais e, consequentemente, devem ser exigíveis do estado.
Os direitos sociais surgem com sua história na Constituição mexicana, de 1917 e à constituição alemã de Weimar, de 1919, representando uma tentativa de superar as deficiências do mercado e promover a justiça social. Marca-se a superação da perspectiva estritamente liberal do estado, estabelecendo-se que a intervenção estatal na economia é necessária para assegurar aos indivíduos vida digna e acesso às oportunidades em geral.
O Estado, portanto, assume compromissos de oferta de serviços, bens e utilidades diversos, que podem incluir desde acesso à água, alimentação e abrigo até prestações envolvendo educação, saúde e previdência social, em meio a muitas outras. E, então, são os direitos sociais incorporados a diversos ordenamentos jurídicos, à exemplo do Brasil, Colômbia e África do Sul[5].
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 contém um capítulo dedicado aos direitos sociais. Nos arts. 7º a 11, cuida-se dos direitos dos trabalhadores, incluindo suas associações profissionais e sindicais. No art. 6º, o texto constitucional identifica um número de direitos sociais em espécie, nos quais se incluem educação, saúde, alimentação, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
Em diversos países, por outro lado, não há menção explicita a tais direitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a concepção predominante é a de que os direitos fundamentais impõem apenas obrigações de não interferência ao Estado, sem gerar deveres de prestação positiva.[6]
Na Alemanha, a Constituição também não consagra expressamente os direitos sociais. Contempla, basicamente, os direitos negativos[7]. Foi em seu Tribunal Constitucional Federal, no entanto, que se desenvolveu o conceito do mínimo existencial, que se tornou importante, inclusive, no Brasil, adotando-o como um princípio jurídico implícito, derivado do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
Por isso, a possibilidade de reivindicar judicialmente os direitos sociais é um dos temas mais complexos do direito constitucional contemporâneo, ao tempo em que os limites de sua concretização constituem temas centrais da jurisprudência constitucional e do debate público, atraindo a questão tormentosa da reserva do possível, segundo o qual a efetivação dos direitos sociais está condicionada à disponibilidade orçamentária do Estado. Destacam-se algumas decisões relevantes:
No julgamento da ADPF 347/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, destacando que a omissão do Estado na garantia de condições mínimas de dignidade fere o mínimo existencial.
No REsp 1.640.035/RS, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)TJ reafirmou que a assistência farmacêutica gratuita a pacientes em situação de vulnerabilidade econômica é obrigação do Estado, reforçando a prevalência do mínimo existencial sobre a reserva do possível.
No Tema 793 do STF, estabeleceu-se que, em casos de negativa de medicamentos não incorporados ao SUS, deve-se comprovar a imprescindibilidade do fármaco para garantir a saúde do paciente, equilibrando o direito à saúde com as limitações orçamentárias.
Em tais casos, à vista do argumento da reserva do possível, invocado para justificar a impossibilidade de garantir certos direitos sociais, verifica-se que o STF, em diversas decisões, tem enfatizado que a escassez de recursos não pode ser um obstáculo absoluto para a efetivação de direitos fundamentais, especialmente quando se trata de garantir condições mínimas de existência.
No STJ, a esse respeito, também se destaca que a reserva do possível não pode ser utilizada como refúgio para a omissão estatal em relação a direitos básicos, especialmente quando envolvem direitos à saúde e à assistência social.
É atual, pois, que as Cortes Superiores Brasileiras têm reconhecido amplamente a possibilidade de condenar o Poder Público a fornecer prestações positivas, considerado o mínimo existencial, a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre restrições meramente de sustentabilidade fiscal.
Não à toa formamos a aldeia.
[1] A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 1 ed., São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010. (Coleção Folha: livros que mudaram o mundo, 11). 208 p.. ISBN 978-85-63270-32-0 (volume 11); ISBN 978-85-63270-21-4 (coleção).
[2] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[3] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[4] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2013.
[5] Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. 9. Ed. - São Paulo, Saraiva Educação, p. 498, 2020.
[6] Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. 9. Ed. - São Paulo, Saraiva Educação, p. 499, 2020.
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