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AS OLIGARQUIAS DIGITAIS VISTAS DO LADO DE CÁ: O TRIBUNAL, NADA SECRETO, DEVE PASSAR RECADO DE SOLIDARIEDADE NA ANÁLISE DO ARTIGO 19 DO MARCO CIVIL DA INTERNET

  • Carolina Gomide
  • 14 de fev.
  • 6 min de leitura










Carolina Gomide de Araujo 

Mestra em Direito do Estado (USP). Pós-graduanda em Direito Digital (UERJ). Pesquisadora visitante na Queen's University (Canadá). Pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais na linha do constitucionalismo feminista e constitucionalismo digital. Autora dos livros "Cortes Constitucionais Digitais" e "Poder Constituinte Originário das Mulheres no Brasil". Advogada. Sócia do Melo Mesquita Advogados.




Milton Santos, famoso geógrafo brasileiro, já alertava há mais de 20 anos sobre as consequências de um modelo de globalização que se afastasse da lógica da solidariedade. Segundo ele: “as grandes empresas são esse centro frouxo do mundo e que se distanciando de uma relação mais obrigatória com os territórios, acaba por lhes permitir uma ação sem responsabilidade social e moral, sobretudo, e é por isso que se desorganiza os territórios tanto socialmente quanto moralmente”[1] .

 

É a esse modelo de globalização sem responsabilização que o geógrafo denomina de globalitarismo, em suas palavras, o domínio de uma lógica financeira, que nada tem a ver com a lógica da solidariedade.

 

A palavra "solidariedade", com origem em diversas culturas, está no direito civil ligada ao termo latino "obligatio in solidum", que se referia às responsabilidades que um indivíduo tem dentro da comunidade da qual faz parte e se beneficia.[2] 

 

No século XXI, o modelo de responsabilização das plataformas digitais ilustra perfeitamente o descompasso entre a lógica financeira e a lógica da solidariedade. Paradoxalmente, as chamadas oligarquias digitais se apropriam do conceito de 'comunidades globais' e, embora seus benefícios sejam representados por cifras que chegam a trilhões, buscam, de forma nada solidária, se eximir da responsabilidade de cuidá-las.

 

Ainda que tenha falecido em 2001, sem presenciar as novas faces do globalitarismo, Milton Santos permanece atual ao identificar a dificuldade de responsabilização social, moral e até jurídica de empresas que se pretendem globais, mas que, na prática, se comportam como centros frouxos do mundo.

 

Agora, o Supremo Tribunal Federal tem diante de si a oportunidade de enfrentar esse problema. No ano judicial que se inicia, a Corte analisará dois recursos extraordinários (RE 1037396 e RE 1057258), que questionam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). O dispositivo estabelece que plataformas digitais só podem ser responsabilizadas civilmente por danos decorrentes de conteúdos de terceiros se houver descumprimento de uma ordem judicial prévia.

 

O julgamento pode redefinir os contornos da responsabilização das plataformas e enviar uma mensagem clara às novas oligarquias digitais: no direito constitucional brasileiro, a solidariedade não é apenas um conceito abstrato, mas uma norma programática e um objetivo da República, exigindo o cuidado e a responsabilização pelos danos à comunidade da qual se beneficia.

 

Os relatores dos recursos extraordinários, ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, já apresentaram seus votos pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, cada um delineando teses com diferentes implicações e obrigações futuras para as plataformas digitais.

 

Todavia, enquanto o STF aguardava o voto-vista do ministro André Mendonça, o mundo não foi exatamente surpreendido, mas certamente abalado pelo anúncio do CEO da Meta sobre a drástica redução dos cuidados da empresa em suas políticas de governança de conteúdo

 

Em 7 de janeiro de 2025, Mark Zuckerberg informou que a plataforma encerrará seu “Programa de Verificação de Fatos”, justificando que os verificadores têm sido politicamente tendenciosos e anunciando que serão substituídos por um sistema de notas de comunidade, semelhante ao utilizado pelo X (antigo Twitter). Além disso, a Meta voltará a recomendar conteúdo político e realocará suas equipes de moderação de conteúdo, confiança e segurança da Califórnia para o Texas, estado mais alinhado com os interesses do agora presidente Donald Trump[3].

 

O CEO também anunciou que flexibilizará as restrições sobre conteúdos relacionados à imigração e identidade de gênero, permitindo a propagação de discursos discriminatórios que antes eram proibidos.

 

A decisão reflete uma visão particular sobre liberdade. Para Zuckerberg, os Estados Unidos teriam as proteções constitucionais mais fortes do mundo para a liberdade de expressão, enquanto, para ele, a Europa estaria adotando um número cada vez maior de leis que institucionalizam a censura. Já sobre a América Latina, afirmou que países da região têm “tribunais secretos” capazes de ordenar a remoção silenciosa de conteúdos, uma provável indireta ao Supremo Tribunal Federal.

 

Nos últimos anos, a Meta havia ampliado investimentos em iniciativas voltadas à segurança da informação e à mitigação de danos sociais, criando programas de parceria para checagem de fatos e até mesmo estabelecendo um órgão que ficou conhecido como “Suprema Corte do Facebook”, com o objetivo, em tese, de aprimorar o tratamento da Meta à sua comunidade global.[4] 

 

A guinada nas políticas da empresa evidencia a fragilidade do modelo de autorregulação: basta uma mudança de conjuntura para que o compromisso com a comunidade dê lugar a uma lógica que, de solidária, tem pouco ou nada.

 

Para as mulheres, minorias de gênero e demais grupos vulnerabilizados pelas mudanças, talvez um conceito extraído da teoria de Milton Santos descreva bem o cenário que se desenha: perverso. E, como tantas vezes na história, essa escolha não se alinha à proteção da democracia, da diversidade ou da segurança da informação. É o reflexo e a extensão do globalitarismo já desenhado por Milton Santos.

 

As oligarquias digitais, que já faziam menos do que o necessário para garantir um ambiente digital seguro e inclusivo, agora optam por fazer ainda menos. Mas a questão essencial permanece: pode a proteção de direitos fundamentais de cidadãos brasileiros ser reduzida a um mero cálculo de custo-benefício privado?

 

Retroceder na proteção dos direitos humanos não é um simples efeito colateral de mudanças estratégicas, mas uma escolha política e consciente. Citando pela última vez Milton Santos[5] nesse artigo:


Nunca, na história da humanidade, houve condições técnicas e científicas tão adequadas a construir um mundo da dignidade humana. Apenas, essas condições foram expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo perverso. Cabe a nós fazer dessas condições materiais a condição material da produção de uma outra política.

 

É necessário, portanto, reivindicar que essas condições sejam usadas para construir um modelo de governança digital.

 

Enquanto se aguarda uma regulação do parlamento para definir um modelo de “autorregulação regulada”, o debate no STF já deixa uma conclusão inescapável: é insuficiente limitar a discussão à constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma civil.

 

Para evitar que as plataformas se apropriem de conceitos fundamentais da Teoria do Estado, talvez seja o momento de clamar por um Marco Constitucional da Internet no Brasil. Uma resposta robusta, tanto material quanto processual, que implemente, de forma radical, os princípios da Constituição Federal em qualquer ambiente onde direitos fundamentais sejam violados.

 

Embora a responsabilização individualizada por danos a terceiros possa representar um primeiro passo para um modelo mais solidário, o cenário das oligarquias digitais expõe violações sistemáticas e difusas dos direitos fundamentais, exigindo intervenções profundas que obriguem a adoção de balizas constitucionais até mesmo na elaboração das políticas internas de governança de conteúdo das plataformas.

 

A mensagem é clara: mesmo no âmbito privado, uma sociedade solidária é incompatível com uma autonomia que opte por menor cuidado e resulte em mais violações aos direitos humanos.

 

Em conclusão, se as oligarquias digitais optarem por fazer menos em relação à proteção de direitos humanos, cabe ao Supremo Tribunal Federal, de forma nada secreta, reafirmar que a Constituição Brasileira não permite esse tipo de retração.

 

O direito à liberdade de expressão garante muito, mas não tudo. A sociedade brasileira idealizada pelo constituinte se pretende não apenas livre, mas também justa e solidária. E qualquer empresa que atue no Brasil tem a obrigação constitucional de ajudar a construí-la. Essa é uma resposta que também se espera de uma Corte Constitucional Digital.[6] 



 

[1] SANTOS, Milton. Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá. Documentário. Direção: Sylvio Tendler. Produção: Caliban Produções Cinematográficas. 2006.

[2] WESTPHAL, Vera Herweg. Diferentes matizes da idéia de solidariedade. Revista katálysis, 11 (1). 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rk/a/qctPHd95zN7VdhhN9gZ7Ght/. Acesso em: 05/02/2025.

[4] GOMIDE DE ARAÚJO, Carolina. Uma Suprema Corte do Facebook? A experiência do Comitê de Supervisão da Meta na governança privada de conteúdo online. 2024. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024.

[5]  SANTOS, Milton. Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá. Documentário. Direção: Sylvio Tendler. Produção: Caliban Produções Cinematográficas. 2006.

[6] GOMIDE DE ARAÚJO, Carolina. Cortes Constitucionais Digitais. 1. ed. Dialética, 2023. v. 1. 148p .

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