ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO CNJ Nº 591/2024: POSSÍVEIS IMPACTOS E INCOMPATIBILIDADES COM O CPC DE 2015, SOB A ÓTICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
- Rebeca Azevedo
- 25 de fev.
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Rebeca Azevedo
Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Pós-graduada em Processo Civil nos Tribunais Superiores pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Advogada e sócia da Advocacia Fernanda Hernandez, com atuação especializada em direito processual e contencioso estratégico. Integra a Comissão de Precatórios da OAB e possui reconhecimentos jurídicos de destaque, incluindo Leaders League (2023, 2024 e 2025), The Legal 500 (2023 e 2024), Best Lawyers (2024 e 2025) e Top Lawyers.
A informatização do processo judicial constitui um fenômeno irreversível na evolução do judiciário brasileiro, sendo a uniformização dos sistemas uma tendência não apenas desejável, mas essencial. A implementação de novas tecnologias em um sistema já estabelecido exige cautela e rigorosa observância às garantias processuais, de modo a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional e a estrita observância dos princípios constitucionais, especialmente o devido processo legal.
A Resolução nº 591/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina os julgamentos eletrônicos, estabelece os requisitos mínimos para a realização de julgamentos de processos em ambiente digital no Poder Judiciário, com o objetivo de promover a modernização e transparência da atividade jurisdicional. Contudo, sua aplicação levanta preocupações quanto à compatibilidade com o Código de Processo Civil de 2015, especialmente no que diz respeito à garantia do contraditório e da ampla defesa, além de suscitar questionamentos sobre a segurança jurídica e os impactos na atuação profissional dos advogados.
A Resolução dispõe que todos os processos – judiciais e administrativos – podem ser julgados eletronicamente, a critério do relator, e estabelece como regra a sustentação oral gravada. Nessas hipóteses, as manifestações podem ser encaminhadas em formato de áudio ou vídeo, devendo ser enviadas eletronicamente até 48 horas antes do início do julgamento.
Art. 2º Todos os processos jurisdicionais e administrativos em trâmite em órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento eletrônico.
(...) Art. 3º Os julgamentos eletrônicos serão públicos, com acesso direto, em tempo real e disponíveis a qualquer pessoa, por meio do sítio eletrônico próprio designado pelo Tribunal.
(...) Art. 8º Não serão julgados em ambiente virtual os processos com pedido de destaque feito: I – por qualquer membro do órgão colegiado; II – por qualquer das partes ou pelo representante do Ministério Público, desde que requerido até 48 (quarenta e oito) horas antes do início da sessão e deferido pelo relator.
(...) Art. 9º Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior que venha a ser definido em ato da Presidência do Tribunal[1].
Embora a medida busque promover celeridade e eficiência, é evidente que a adoção dessa diretriz como regra geral tende a limitar a interação entre as partes e os magistrados, comprometendo a dinamicidade do debate oral e a imediação — elementos fundamentais para a adequada formação da convicção dos julgadores. Ademais, a exigência de deferimento do pedido de destaque pelo relator impõe uma restrição ao direito das partes ao julgamento presencial, o que pode impactar negativamente a análise de casos de maior complexidade.
Natureza, Limites e Impactos da Competência Normativa do CNJ à Luz do Código de Processo Civil de 2015
A competência normativa do CNJ encontra fundamento no artigo 103-B, §4º, da Constituição Federal, o qual lhe confere atribuição para expedir atos regulamentares e recomendações no âmbito administrativo e disciplinar do Poder Judiciário. Contudo, tal competência não é ilimitada, devendo ser exercida nos estritos limites da legislação vigente e do arcabouço constitucional, especialmente no que se refere à separação de poderes e à reserva legal em matéria processual.
Nas decisões proferidas pelo STF no Mandado de Segurança nº 32.582 (MC-AgR-AgR), no Recurso Extraordinário nº 1.059.466 (Tema nº 966- RG), e no Mandado de Segurança nº 35.918 (AgR), a Suprema Corte reafirmou que a competência do CNJ deve se restringir ao controle administrativo, vedando qualquer interferência na autonomia dos tribunais, salvo quando necessário para assegurar a observância de princípios constitucionais, como a moralidade e a eficiência administrativa.
A compatibilidade da Resolução nº 591/2024 do CNJ com o CPC/2015 demanda uma análise detida, especialmente à luz dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 7º, CPC).
Inevitavelmente, a substituição da sustentação oral presencial por gravações enviadas previamente pode limitar o exercício pleno da ampla defesa, pois a presença física no julgamento possibilita o esclarecimento de fato, mecanismo essencial que frequentemente leva os magistrados a uma análise mais aprofundada das questões controvertidas. Essa interação direta pode ser determinante para a reavaliação de argumentos e, em alguns casos, até mesmo para a alteração do resultado do julgamento.
Por consequência lógica, a vedação à realização de esclarecimentos de fato pelos advogados pode acarretar um aumento sistêmico no número de recursos, uma vez que a impossibilidade de intervenção direta durante o julgamento tende a resultar em decisões fundamentadas em premissas equivocadas ou incompletas.
A ausência desse mecanismo de correção imediata transfere para as instâncias recursais o ônus de suprir eventuais lacunas na apreciação dos fatos, impactando negativamente a eficiência do sistema judiciário e sobrecarregando os tribunais — resultado que contraria a própria finalidade da Resolução nº 591/2024 do CNJ, cujo objetivo é a modernização e a celeridade processual.
Sobre o tema, cabe ainda destacar a regra da publicidade dos atos processuais, consagrada no art. 11 do CPC, segunda a qual “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”[2].
A exclusividade de julgamentos eletrônicos pode comprometer a aludida regra processual, especialmente em processos de grande repercussão ou que envolvem temas sensíveis. A restrição da participação ao meio digital limita o controle social sobre a atuação do judiciário e reduz a publicidade dos atos processuais, gerando a percepção de restrição ao acesso à informação. Esse cenário impacta a legitimidade das decisões, a confiança na prestação jurisdicional e enfraquece a fiscalização democrática e a credibilidade do sistema de justiça[3].
Cabe ainda mencionar que publicidade dos atos processuais é princípio fundamental consagrado no art. 5º, LX, da Constituição Federal, o qual restringe seu sigilo apenas quando necessário para a proteção da intimidade ou do interesse social. Esse princípio garante transparência, legitimidade e controle das decisões judiciais, beneficiando tanto as partes quanto a sociedade.
No mesmo sentido, o art. 5º, XXXIII, da Constituição reafirma que a publicidade é a regra e o sigilo, a exceção, sendo este admitido apenas quando essencial à segurança da sociedade e do Estado. Sua aplicação exige ponderação e interpretação equilibrada, considerando eventuais colisões com outros direitos fundamentais.
Prorrogação da Vigência da Resolução nº 591/2024 e Controvérsias Sobre sua Implementação
Considerando que a entrada em vigor da Resolução nº 591/2024 estava prevista para 03/02/2025 (art. 16), diversos tribunais solicitaram ao CNJ a prorrogação do prazo, alegando a necessidade de adaptações tecnológicas nos sistemas eletrônicos de julgamento.
Além das dificuldades operacionais, a norma tem sido alvo de críticas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), que apontam potenciais violações às prerrogativas da advocacia e riscos ao devido processo legal, especialmente no que tange à limitação da sustentação oral presencial e à transparência dos julgamentos eletrônicos[4].
As principais preocupações residem: (i) impossibilidade de sustentações orais síncronas em julgamentos eletrônicos; (ii) falta de previsibilidade no deferimento de pedidos de destaque; e (iii) impacto da eliminação do contato direto entre advogados e magistrados na formação da convicção dos julgadores.
Em decisão de 29/01/2025, o Ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), proferiu decisão no processo 0007972-11.2024.2.00.0000, referente ao acompanhamento da implementação da Resolução 591/2024 pelo CNJ, no sentido de ampliar os prazos de implementação da Resolução nº 591/2024, atendendo ao requerimento dos tribunais. O pedido foi parcialmente deferido, concedendo até 180 dias para a adaptação.
O Ministro também esclareceu que o art. 8º da Resolução não impede que os tribunais adotem o destaque automático a pedido das partes, indo além das hipóteses mínimas previstas na Resolução. Por fim, indeferiu o pedido da OAB para suspensão da vigência da Resolução, fundamentando que a medida poderia gerar insegurança jurídica e prejudicar o processo de adaptação dos tribunais e conselhos, os quais ainda dependem do desenvolvimento e implementação das funcionalidades necessárias.
A implementação da Resolução nº 591/2024 do CNJ impacta garantias processuais fundamentais previstas no Código de Processo Civil de 2015, especialmente os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade dos atos processuais. A obrigatoriedade da sustentação oral gravada e a restrição da interação direta nos julgamentos podem comprometer a transparência processual, a formação da convicção judicial e ampliar o volume de recursos, sobrecarregando o sistema judiciário.
Diante desse cenário, surge um questionamento central: prevalece a regulamentação do CNJ ou as normas processuais estabelecidas pelo Poder Legislativo? Embora o CNJ tenha competência para disciplinar questões administrativas, não pode restringir direitos e garantias assegurados na legislação processual. Assim, a aplicação da Resolução deve ser reavaliada para garantir que a modernização do processo judicial ocorra sem comprometer a segurança jurídica e o equilíbrio entre eficiência e direitos fundamentais.
[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 591, de 23 de setembro de 2024. Diário da Justiça [do] Conselho Nacional de Justiça, Brasília, DF, n. 261, p. 3-5, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19 fev. 2025.
[2] BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19 fev. 2025.
[3] A exemplo da percepção do brasileiro frente ao Poder Judiciário, a pesquisa Poder Data de 2024 identificou uma queda nos índices de aprovação do Supremo Tribunal Federal de 31% para 12% em apenas dois anos, demonstrando como a atuação de órgãos do referido poder estão sujeitos ao escrutínio dos jurisdicionados. Ver https://www.poder360.com.br/poderdata/avaliacao-positiva-do-stf-cai-de-31-para-12-em-2-anos/ . Acesso em 19.02.2025.
[4] Inclusive, alguns nomes da doutrina brasileira questionam a própria competência do Conselho Nacional de Justiça em criar regulações que contrariam frontalmente o disposto no Código de Processo Civil sob o argumento da sua competência regulamentadora. Ver https://www.conjur.com.br/2024-dez-12/cnj-nao-tem-poder-de-alterar-o-cpc-e-nem-de-criar-regras-de-processo/.Acesso em 19.02.2025.
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