A IMPORTÂNCIA DO JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO NAS CORTES SUPERIORES
- Adriana Mello
- 24 de mar.
- 7 min de leitura

Adriana Ramos de Mello
Doutora em Direito Público e Filosofia Jurídico-política pela Universidade Autônoma de Barcelona. Professora da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Direitos Humanos e acesso à justiça da ENFAM (GEPDI 11). Desembargadora do TJ-RJ.
O julgamento com perspectiva de gênero é um conceito essencial para a promoção da justiça social e a proteção dos direitos humanos das mulheres. Nas cortes superiores, essa abordagem se revela fundamental, não apenas para garantir a equidade nas decisões judiciais, mas também para desmantelar estruturas de opressão que perpetuam discriminações históricas. Este artigo discute a importância do julgamento com perspectiva de gênero e seu impacto nas decisões e na sociedade.
O julgamento com perspectiva de gênero implica considerar as desigualdades e as dinâmicas de poder que afetam diferentes gêneros nas decisões judiciais. Essa abordagem busca ir além do aparente “igualitarismo” nas leis, considerando a diversidade das experiências femininas e a realidade de grupos marginalizados. Ela se fundamenta na ideia de que o sistema jurídico deve reconhecer e corrigir desigualdades estruturais que afetam a vida das mulheres e de outros gêneros.
A aplicação da perspectiva de gênero nas decisões das cortes superiores é crucial para desconstruir estereótipos de gênero e de preconceitos arraigados na sociedade. As decisões judiciais não são feitas no vácuo; elas refletem valores, normas e crenças sociais. A ausência dessa perspectiva pode resultar em decisões que perpetuam discriminações e injustiças. Assim, incorporar uma análise de gênero nas decisões é fundamental para promover mudanças sociais significativas.
A jurisprudência nacional já apresenta casos emblemáticos nos quais a perspectiva de gênero fez a diferença. Decisões envolvendo violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos e assédio sexual são exemplos claros nos quais a análise de gênero trouxe novos entendimentos e, muitas vezes, resultados mais justos. Nos tribunais, o reconhecimento da intersecção entre classe, raça, sexualidade e gênero enriquece o debate e possibilita decisões mais justas.
As cortes superiores também têm a responsabilidade de promover a inclusão não apenas em seus julgamentos, mas em sua composição. A diversidade entre juízes e juízas fortalece a argumentação e enriquece o processo decisório. A presença de magistrados e de magistradas sensibilizados para questões de gênero é um fator que influencia positivamente a aplicação dessa perspectiva nos julgamentos.
Apesar dos avanços, a implementação do julgamento com perspectiva de gênero enfrenta desafios consideráveis. Resistências culturais, preconceitos arraigados e a falta de formação específica para magistrados(as) são barreiras que ainda precisam ser superadas. Fundamental, portanto, investir em capacitação e sensibilização no Poder Judiciário, além de promover diálogos interinstitucionais que fortaleçam essa abordagem.
O Poder Judiciário brasileiro já tem um acervo importante de decisões com perspectiva de gênero que ajudam a entender como essa forma de julgar é relevante para eliminar estereótipos e preconceitos que permeiam a sociedade e o mundo jurídico. Analisaremos algumas decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça em matéria de violência doméstica e de crimes contra a dignidade sexual.
O STJ estabeleceu que, no contexto de violência doméstica contra a mulher, a decisão que homologa o arquivamento do inquérito deve observar a diligência na investigação e os aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima[1]. Em acórdão que versava sobre arquivamento de inquérito policial em caso de lesão corporal contra a mulher, a Ministra Laurita Vaz decidiu conforme essa tese, observando ainda os arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992), art. 7.º, alínea b, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/1996) e a Resolução n. 492/2023 do CNJ[2].
Já em decisão monocrática do Ministro Rogério Schietti Cruz em um Agravo em Recurso Especial[3], aplicou-se a tese de que a vítima de violência doméstica deve ser ouvida para se verificar a necessidade de prorrogação/concessão das medidas protetivas, ainda que extinta a punibilidade do autor[4]. O Tribunal considera que as medidas protetivas têm como objeto proteger a vítima e devem permanecer enquanto durar a situação de perigo. A fim de evitar a perenização das medidas, orienta-se a revisão periódica da necessidade de sua manutenção.
Outro importante entendimento adotado pelo Tribunal é a de extensão das medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006 às minorias, como transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis em situação de violência doméstica, afastado o aspecto meramente biológico[5]. Atualmente, a abrangência da Lei Maria da Penha foi ainda mais estendida, após o Supremo Tribunal Federal reconhecer no julgamento do Mandado de Injunção 7.452 a mora legislativa e determinar a incidência da norma protetiva da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares[6].
Em relação aos crimes contra a dignidade sexual, o STJ reconheceu o especial valor probatório da palavra da vítima nesse tipo de delito, devendo ser cotejada com os demais elementos de prova, tendo em vista que os crimes dessa natureza são cometidos às ocultas, na clandestinidade, normalmente, na presença apenas do agressor e da vítima. Em decisão do Ministro Rogério Schietti Cruz[7], evidencia não só a relevância da narrativa da vítima, mas também a tese firmada pelo STJ no Tema Repetitivo 1.121 de que, presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiros, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, impossibilitando a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP).
Nesse sentido, a importância do julgamento com perspectiva de gênero nas cortes superiores vai muito além de garantir um tratamento igualitário nas decisões. Ela constitui um passo fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todas as pessoas têm seus direitos fundamentais respeitados. Ao incorporar essa perspectiva, as cortes não só cumprem seu papel de justiça, mas também se tornam agentes de transformação social. Embora a luta pela igualdade de gênero exija o comprometimento de todos os segmentos da sociedade, o Poder Judiciário exerce um papel vital nesse processo.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo em Recurso Especial n. 2389611-MG (2023/0207398-8). Voto da Min. Daniela Teixeira. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202302073988&dt_publicacao=10/04/2024. Acesso em: 13 mar. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Medidas Protetivas da Lei Maria da Penha. Edição 205. Brasília, 09 de dezembro de 2022. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetPDFJT?edicao=205. Acesso em: 12 mar. 2025.
BRASIL. STF amplia proteção da Lei Maria da Penha a casais homoafetivos do sexo masculino, travestis e transexuais. Por unanimidade, Plenário reconheceu demora na edição de lei sobre o tema. Supremo Tribunal Federal (online), 24 fev. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-amplia-protecao-da-lei-maria-da-penha-a-casais-homoafetivos-do-sexo-masculino-travestis-e-transexuais/. Acesso em 12 mar. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N. 2802090-PR (2024/0452281-6). AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO. SÚMULA N. 7 DO STJ. ELEMENTOS EXTRAJUDICIAIS CONFIRMADOS EM JUÍZO. DELITOS SEXUAIS. PRÁTICA NA CLANDESTINIDADE. PALAVRA DA VÍTIMA. MAIOR VALOR PROBANTE. TESTEMUNHA QUE NÃO PRESENCIOU OS FATOS, MAS QUE INFORMOU SOBRE COMPORTAMENTOS COMPATÍVEIS COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAIS SOFRIDAS. POSSIBILIDADE. SÚMULA N. 83 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. Min. Rel. Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma, j. 11-02-2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Julgamento com perspectiva de gênero II. Edição 210, Brasília, 4 abr. 2023. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/doc.jsp?livre=%27210%27.tit. Acesso em: 12 mar. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Julgamento com perspectiva de gênero IV. Edição 231. Brasília, 01 mar. 2024. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetPDFJT?edicao=231. Acesso em: 12 mar. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 70338/SP. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL PENAL. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. INQUÉRITO POLICIAL. ARQUIVAMENTO. DEVER DE DEVIDA DILIGÊNCIA INVESTIGATIVA. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS POSSÍVEIS. FUNDAMENTAÇÃO INCONSISTENTE PARA O ARQUIVAMENTO. NEGLIGÊNCIA NA APURAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL. ATO JUDICIAL QUE VIOLOU DIRETO LÍQUIDO E CERTO. GARANTIAS JUDICIAIS. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO. ENCAMINHAMENTO DOS AUTOS AO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA PARA MELHOR ANÁLISE. NECESSIDADE. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO PARA CONCEDER PARCIALMENTE A SEGURANÇA. Min. Rel. Laurita Vaz. Sexta Turma, Brasília, j. 22-08-2023, Public. 30-08-2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 2482056-MG (2023/0375118-0). Min. Rel. Rogério Schietti Cruz. Brasília, j. 29-01-2024, Public. 19-02-2024.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Julgamento com perspectiva de gênero II. Edição 210. Brasília, 4 abr. 2023.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 70338/SP. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL PENAL. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. INQUÉRITO POLICIAL. ARQUIVAMENTO. DEVER DE DEVIDA DILIGÊNCIA INVESTIGATIVA. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS POSSÍVEIS. FUNDAMENTAÇÃO INCONSISTENTE PARA O ARQUIVAMENTO. NEGLIGÊNCIA NA APURAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL. ATO JUDICIAL QUE VIOLOU DIRETO LÍQUIDO E CERTO. GARANTIAS JUDICIAIS. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO. ENCAMINHAMENTO DOS AUTOS AO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA PARA MELHOR ANÁLISE. NECESSIDADE. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO PARA CONCEDER PARCIALMENTE A SEGURANÇA. Min. Rel. Laurita Vaz. Sexta Turma, Brasília, j. 22-08-2023. Public. 30-08-2023.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 2482056-MG (2023/0375118-0). Min. Rel. Rogério Schietti Cruz. Brasília, j. 29-01-2024. Public. 19-02-2024.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Julgamento com perspectiva de gênero IV. Edição 231. Brasília, 01 mar. 2024.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Medidas Protetivas da Lei Maria da Penha. Edição 205. Brasília, 09 dez. 2022.
[6] BRASIL. STF amplia proteção da Lei Maria da Penha a casais homoafetivos do sexo masculino, travestis e transexuais. Por unanimidade, Plenário reconheceu demora na edição de lei sobre o tema. Supremo Tribunal Federal (online), 24 fev. 2025.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N. 2802090-PR (2024/0452281-6). AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO. SÚMULA N. 7 DO STJ. ELEMENTOS EXTRAJUDICIAIS CONFIRMADOS EM JUÍZO. DELITOS SEXUAIS. PRÁTICA NA CLANDESTINIDADE. PALAVRA DA VÍTIMA. MAIOR VALOR PROBANTE. TESTEMUNHA QUE NÃO PRESENCIOU OS FATOS, MAS QUE INFORMOU SOBRE COMPORTAMENTOS COMPATÍVEIS COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAIS SOFRIDAS. POSSIBILIDADE. SÚMULA N. 83 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. Min. Rel. Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma, j. 11-02-2025.
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